Trazer o Evangelho para Casa no Cambodja

James Goldberg
23 July 2015

Como Vichit Ith Trouxe a Nova Fé para Sua Terra Natal

Fantasmas do Passado

Quando Vichit Ith era adolescente, o mundo ao seu redor parecia estar se desintegrando. De tempos em tempos, ele sentia os tremores das cerca de 3 milhões de toneladas de explosivos lançadas sobre sua terra natal, o Camboja, pelos bombardeiros B-52 da força aérea dos Estados Unidos, numa extensão da guerra no país vizinho, o Vietnã.1 Na mesma época, um golpe depôs a monarquia e uma milícia comunista secreta — conhecida como Khmer Rouge — começou a receber apoio e abrir um caminho sangrento em direção ao capitólio. Naquela ocasião, a vida era tão angustiante para muitos cambojanos, quanto o era nos tempos mais violentos descritos no Livro de Mórmon, tanto que estudiosos ainda têm dificuldade para compreender quais fatores fizeram com que uma sociedade relativamente tranquila decaísse tão rapidamente. “Nós nunca entendemos o que realmente aconteceu”, Vichit disse a respeito de sua própria experiência, “só vimos as pessoas morrerem.”2

O pai de Vichit, Pao Ith, fez o que pôde para proteger sua família. Como especialista em engenharia florestal, com formação na França, Pao valorizava a educação e o serviço público. Sabia também que seus filhos encontrariam poucas oportunidades de aprendizado na zona de guerra que Phnom Penh havia se tornado: assim, em 1974, ele enviou Vichit para estudar nas Filipinas, e enviou a mãe de Vichit e os outros três filhos para a França. Ainda assim, Pao permaneceu, na esperança de que o fim da guerra traria novas oportunidades de usar seu conhecimento para o bem da terra e do povo. No entanto, o vitorioso Khmer Rouge virou-se contra o povo. Um em cada quatro cambojanos — inclusive Pao Ith — morreria sob seu domínio.

Após a queda de Phnom Penh para o Khmer Rouge, em abril de 1975, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados enviou a Vichit uma passagem de avião só de ida, para que ele pudesse unir-se a seus familiares sobreviventes na França. Ele trouxe consigo uns poucos pertences e “vários fantasmas do passado.” Em sua nova vida como refugiados em Paris, ele assumiu a responsabilidade de provedor para sua mãe e seus irmãos. Ele tinha 19 anos de idade.

Síndrome do Prato de Arroz

Na França, Vichit fez bicos para sustentar sua família e, em seu escasso tempo livre, fez cursos por correspondência em preparação para a faculdade. Seu trabalho árduo valeu a pena: em 1977, ele recebeu uma bolsa de estudos para estudar sociologia na Sorbonne. “Depois do que me aconteceu no Camboja, fiquei muito inclinado a estudar ciências sociais”, ele relembra. Contudo, apesar de suas notas estarem entre as mais altas da turma, a esperança de encontrar respostas por meio de seus estudos logo deu lugar a preocupações a respeito de como ele ganharia o suficiente para sustentar a família com uma graduação em sociologia. Motivado pela necessidade de colocar o “prato de arroz” em primeiro lugar, Vichit mudou de curso e foi estudar comércio exterior.

Por ser budista, ele disse a si mesmo que, depois de buscar uma carreira, poderia reservar algum tempo para buscar paz e reconciliação espiritual com o passado. “Eu pensava em me aposentar e me preparar para a morte, em ir meditar como uma eremita em algum lugar. Estar realmente afastado deste mundo”, disse ele. “Depois de ver todas as atrocidades da guerra, (…) isso era algo que eu queria muito fazer.”

Enquanto isso, mergulhou de cabeça no trabalho. Para adquirir experiência em vendas, conseguiu um trabalho vendendo “meias-calças, meias e outras coisas” femininas, na região rural do centro da França. Como poucas pessoas da região já tinham visto um cambojano antes, ele às vezes se sentia “como um extraterrestre”, mas essa experiência o preparou para seu próximo emprego, numa empresa internacional de comércio. Sendo rapidamente promovido de vendedor júnior a diretor de área para as regiões do Oriente Médio e Extremo Oriente, ele passou a viajar para a Síria, Arábia Saudita, Egito, Sudão, Tailândia e Cingapura; parecia que o mundo inteiro estava aberto para ele.

Não É Preciso Ficar Sozinho

Mas ainda faltava algo em sua vida. Ele conheceu uma mulher chamada Tina Khoo num encontro às cegas em Cingapura mas, apesar de ter se interessado por ela, sua agenda lotada impediu-o de levar o relacionamento adiante. Um ano depois do encontro com Tina, Vichit começou a sentir-se “esgotado no trabalho, por causa das muitas viagens” e decidiu “parar e voltar para Cingapura e tentar encontrar sua namorada.”

Quando Vichit falou em casamento, porém, “Tina disse-lhe que ela só se casaria no templo da sua Igreja.” A princípio, Vichit não pensou “que isso seria um problema. Havia templos para todos os lados em Cingapura.”3 Mas logo ficou claro que ele precisaria a abraçar a fé SUD dela para fazer o convênio do casamento com ela. Quando a antiga empresa em que trabalhava lhe ofereceu uma posição no Egito, com menos estresse e viagens, Vichit decidiu adotar a fé de Tina, para que pudesse trazê-la para o Cairo como sua esposa.

Contudo, ele não sabia muito sobre aquela fé. “A única coisa que eu já tinha ouvido falar sobre a Igreja era a respeito da poligamia”, lembra-se — uma prática que havia abolida da Igreja muito antes de ter sido banida do Camboja. Ele tinha muita coisa a aprender com as lições que os missionários precisavam ensinar, contando apenas com o auxílio de algumas conversas com um membro francês da Igreja, que residia no local, e o sentimento de que as crenças de sua futura esposa “não poderiam estar tão erradas”. Ainda assim, o espírito da mensagem de alguma forma também tocou seu coração. Ao aprender, ele começou a refletir sobre sua longa busca por um significado e seu desejo de levar uma vida espiritual após a aposentadoria. Ele acreditou que, “de fato, o Pai Celestial havia respondido às suas orações. Por que eu deveria esperar tanto para ter uma vida espiritual?”, ele se perguntou. Por meio do evangelho restaurado, ele poderia viver uma vida consagrada. “Você pode fazer muitas coisas maravilhosas agora, sem precisar ir meditar sozinho numa montanha.”

Todos Eram Americanos

Vichit Ith foi batizado em Cingapura, na véspera de seu casamento em 1987. Na semana seguinte, ele foi à Igreja no Cairo. Como um cambojano cheio de lembranças dolorosas sobre a intervenção militar em seu país, ele ficou surpreso ao ver que muitos membros da Igreja no Egito eram militares norte-americanos, em geral veteranos do Vietnã, que haviam sido enviados para apoiar o exército egípcio. O presidente do ramo, Don Forshee, “parecia-se com Henry Kissinger,”4 o que não ajudou a aliviar o estresse de Vichit. Como ele poderia adorar com um grupo onde ele se sentia tão deslocado?

“Foi um começo difícil”, ele disse. As primeiras impressões espirituais que sentiu antes de seu batismo não foram suficientes para sustentá-lo em meio ao desafio cultural que agora enfrentava. Aos domingos, Vichit continuou a levar Tina de carro para a Igreja, mas esperava do lado de fora enquanto ela assistia às reuniões. O desejo dela de viver o evangelho junto com seu marido parecia estar se esfacelando.

Mas Tina não iria desistir facilmente. Uma semana, na reunião de jejum e testemunho, ela levantou-se e implorou aos membros do ramo que estendessem a mão para seu marido ausente. “Preciso de sua ajuda, preciso que façam amizade com meu marido e que tentem encontrar meios de falar com ele e fazê-lo sentir-se à vontade com a Igreja”, disse ela. Os membros ouviram e Vichit começou a deixá-los entrar em sua vida. “Eles estavam dando o melhor de si”, disse Vichit, que começou a aceitar convites para participar de refeições e atividades. Ao longo do tempo, o crescente relacionamento espiritual com os membros sobrepujou suas impressões iniciais sobre eles. “O Egito foi de fato um momento decisivo em minha vida, graças a todos aqueles membros, que foram maravilhosos”, disse Vichit. “Eles me ajudaram muito a adquirir meu testemunho do evangelho.”

Vichit aprendeu que o evangelho pode ajudar a criar pontes entre diferenças intimidadoras, tanto imaginárias quanto reais. “No fim das contas, somos todos filhos de Deus, acreditando nas mesmas coisas.”

Retorno ao Camboja

Por meio de conversas com os membros da Igreja no Cairo, Vichit interessou-se pelo programa de MBA da BYU e foi aceito lá.5 Tina deu à luz sua primeira filha em Provo, enquanto Vichit terminava os estudos, e depois a família Ith mudou-se para a Tailândia, onde Vichit exerceria seu próximo emprego.

Enquanto os Ith estavam morando na Tailândia, as coisas começaram a mudar no Camboja. Em 1991, a missão da ONU foi aceita no país, a fim de ajudar a promover a paz e a reconstrução, depois de tantos anos de destruição. Embora houvesse combatentes ativos do Khmer Rouge na zona rural, as primeiras eleições livres do país foram anunciadas em 1993.

As pessoas começaram a entrar em contato com Vichit. O príncipe Norodom Ranariddh, filho do rei que havia empregado o pai de Vichit, era candidato nas eleições e convidou Vichit para fazer parte de seu partido e de seu governo. O presidente da missão Tailândia, Larry White, percebeu que ali estava a oportunidade de trazer a Igreja ao Camboja e se sentiu inspirado a perguntar ao irmão Ith se ele estaria disposto a ajudar.

Inicialmente, Vichit disse não a ambos os homens. Para o príncipe Ranariddh, ele simplesmente alegou: “Eu não sou político.” Com o Presidente White, ele foi mais direto: “Não me peça para voltar ao Camboja, pois minha vida e minhas experiências lá foram muito traumatizantes.” Mas ao mesmo tempo, Vichit teve uma sensação de que “não poderia esconder-se de seu passado.” Quando seu país e sua Igreja mais uma vez convidaram-no a voltar, ele parou para pensar. Ele sempre conversava com o presidente White, “e um dia acabou indo ao Camboja com ele de avião.”

A Bênção da Nação

Em 29 de abril de 1993, um grupo de cinco santos dos últimos dias — John e Shirley Carmack, Larry e Janice White, e Vichit Ith — pousou na pista esburacada do aeroporto de Phnom Penh. O primo da mãe de Vichit, que trabalhava no Ministério das Relações Exteriores do Camboja, encontrou-os no aeroporto e acompanhou-os em sua primeira reunião com representantes do governo.

Depois de uma excelente reunião, os casais Carmack e White acompanharam Vichit numa visita à casa de sua infância. Dizer que as coisas haviam mudado seria um eufemismo. “A casa estava ocupada por um general do Camboja, e havia um rifle automático AK-47 no antigo quarto [de Vichit]”, recorda-se o presidente White. Ainda assim, o que mais impressionou Vichit em meio a todo o tumulto foram as mangueiras ao redor da casa, que eram pequenas quando ele era jovem, mas “agora estavam grandes e repletas de frutos verdes.”6

Revisitar a casa onde ele havia vivido com seu pai em momentos de paz e de guerra trouxe fortes lembranças para Vichit. Quando saiu de lá, ele não sabia que nunca mais veria seu pai. Ele não teve a oportunidade de expressar sua gratidão pela última vez ou de dar um último adeus. Naquela noite, Vichit contou ao presidente White que “sempre havia desejado que seu pai tivesse orgulho dele; e talvez não houvesse melhor forma de concretizar esse desejo do que ajudar a Igreja a entrar no Camboja.”

“Ele chorou enquanto falava”, lembra o presidente White. E então, juntos, os cinco membros da Igreja se ajoelharam e oraram. Como a autoridade presidente da Área Ásia, o Élder Carmack “ofereceu uma bênção do sacerdócio sobre aquela nação. Ele orou para que houvesse um espírito de comprometimento e reconciliação” entre o povo, o qual permitiria que a paz prevalecesse — e que o desejo de Vichit fosse alcançado.7

Muita Esperança pelo País

Em maio de 1993, ocorreram as eleições no Camboja e um novo governo foi estabelecido de forma pacífica. Durante a visita ao Camboja em abril de 1993, Vichit se convenceu de que havia chegado a hora de servir diretamente ao seu país; assim, ele voltou para lá como consultor econômico do novo primeiro-ministro e logo se tornou o chefe da Junta de Investimentos do Camboja Ao mesmo tempo, trabalhou diretamente com o Ministério de Assuntos Religiosos e Culturais para conseguir o reconhecimento oficial da Igreja no Camboja e para ajudar a obter o visto para os missionários e outros representantes da Igreja. Esse trabalho foi essencial e preparou o caminho para o batismo de Phal Mao, a primeira pessoa a se filiar à Igreja no Camboja em maio de 1994.8

Ao observar o quanto a Igreja cresceu nos anos seguintes, Vichit relatou ter ficado “impressionado com a força do testemunho dos novos membros”. “Eles estavam sedentos de paz e amor”, disse ele, e o modo como viviam demonstrou seu comprometimento em trazer esses princípios para dentro de seus lares e comunidades. Em especial, Vichit achou “espiritualmente recompensador” ver conversos vietnamitas “unidos pelo evangelho” com seus irmãos e irmãs cambojanos, apesar das desavenças históricas entre os dois povos.

Mesmo nos momentos em que encontrou dificuldades e lentidão em seu trabalho para o governo, Vichit lembrava-se da fé dos membros e sentia “muita esperança pelo país”. Ele sentiu que o mesmo evangelho que fizera dele “uma pessoa, um marido e um pai melhor” poderia ajudar a curar sua terra natal. Em seu relato ao Phnom Penh Post, em 1995, ele disse que “a crença da Igreja na vida simples e frugal, no trabalho árduo e no serviço comunitário é muito importante para o Camboja”.

Vichit também ficou contente quando ramos cambojanos começaram a enviar missionários para pregar em outros países. “Sinto-me muito feliz porque um dos assistentes cambojanos em meu gabinete estava entre os primeiros missionários enviados à Califórnia”, disse Vichit. Seu legado e experiência únicos podem ajudar a levar o evangelho às pessoas de todo o mundo que tanto o necessitam. Com o tempo, duas das filhas de Vichit também serviriam: uma na missão Taiwan Taichung e outra na missão Leeds Reino Unido.9

Hoje, quarenta anos depois de ter sido enviado para longe de um sofrido Camboja, Vichit olha para a nova geração na Igreja e vê “grandes promessas para o país, promessas fundamentadas na retidão.”10 A despeito de todo o desenvolvimento econômico visto no Camboja ao longo dos últimos vinte anos, seus maiores recursos sempre serão as pessoas que vivem uma vida digna e estendem a mão para servir ativamente uns aos outros.